
No coração de Manaus, onde os carros disputam espaço com o tempo e as fachadas modernas escondem o barro antigo, pulsa uma memória que insiste em sobreviver. É sutil, como o cheiro de tucupi ao meio-dia, como um sussurro no vento que sopra do rio para o asfalto. É a alma indígena, entranhada nos poros da cidade, mesmo que a cidade prefira esquecê-la.
No bairro de São Vicente de Fora, entre becos e histórias que não chegaram aos livros, viveram – e ainda vivem – os verdadeiros primeiros. Povos indígenas que, antes da catequese, do concreto e da cerca, chamavam aquele chão de lar. Ali, entre árvores que hoje já não existem e igarapés que viraram ruas, erguiam rituais, criavam filhos em língua própria, adoravam deuses que a pólvora e a cruz não entenderam.
Hoje, quase ninguém nota quando passam. Carregam sacolas de feira, vendem artesanato na Ponta Negra, pedem espaço nas calçadas, mas ninguém os reconhece como donos de nada. O Estado lhes deu um papel com foto e nome, mas tirou a língua, a fé, a terra. São sobreviventes num território onde deveriam ser soberanos.
A cultura indígena foi virada do avesso, esvaziada, triturada em postagens de Instagram com filtro sépia. Suas danças viraram espetáculo, sua medicina, curiosidade de feira de ciências. A cidade, ingrata, se apropria do que pode vender e despreza o que deveria preservar. Roubaram-lhes as palavras, mas continuamos usando “tacacá”, “maniçoba”, “tipiti” e nem nos perguntamos de onde veio.
E quanto às crenças? Rir do “mau olhado”, do “banho de ervas”, da “reza de sarapó” é fácil, mas não dormimos tranquilos sem um galho de arruda atrás da porta. A superstição urbana é neta da pajelança. E mesmo sem saber, cada manauara carrega uma centelha dessa alma ancestral que nos sustenta: no peixe no almoço de sexta, no medo da matinta, na crença de que a floresta vê tudo.
O crime maior, porém, é o silêncio. Não se trata apenas de matar com armas ou ignorar com leis. Matar é também esquecer. É transformar o indígena em tema de redação escolar, em personagem de desfile de escola, em dado estatístico da Funai. É negar-lhes voz, lugar, fé. É fingir que o genocídio acabou quando ele apenas mudou de roupa.
E nós, que escrevemos, que pensamos, que falamos — o que fazemos diante disso? Nosso papel não é apenas o de observadores. É o de ponte. De memória. De resistência.
Porque manter viva a tradição indígena não é um gesto de caridade cultural. É uma dívida. Uma responsabilidade que temos com a terra que nos deu o barro para erguer nossa casa, com o rio que ensinou a cidade a respirar, com os primeiros que ainda caminham por São Vicente de Fora e por tantos outros cantos de Manaus.
Talvez a verdadeira luta seja essa: não permitir que a alma indígena se torne apenas uma sombra no retrovisor da história. Que ela continue viva — nas palavras, nos gestos, no respeito.
E que cada crônica como esta seja um pequeno ritual, uma oferenda, um pedido de desculpas.
E um compromisso de nunca esquecer.